quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O dia em que fugi de casa


O título deveria ser 'uma das vezes que eu fugi de casa', já que eu comecei a "fugir" de casa aos 12 anos. Mas essa é outra história.

A verdade é que ninguém foge de casa aos 20 anos. A única pessoa que poderia achar uma coisa destas seria uma mãe, que é o caso.

Vou tentar contar de uma maneira engraçada, inclusive as partes que são semi-trágicas porque rir das coisas que passaram é o que nos resta no final das contas. Porém também preciso explicar detalhes importantes que são anteriores à fuga.

Um belo dia deu na telha do meu irmão se mudar para Floripa - temos a tendência de ter telhas meio soltas mesmo. E foi. E eu fiquei aqui, morrendo de saudade e de preocupação,afinal, se eu tinha 20, ele tinha 17 ou 18 anos.

Hoje eu sei que quanto mais novos, mais idiotas somos - essa equação é infalível! - e, nessa época idiota, eu resolvi ir à um cartomante - vejam só! Mas não pensem que era qualquer cartomante não! Era indicação de gente de confiança, amigona mesmo, de infância e tudo mais, sabe? Segundo ela, o cara falava TUDO sem você dizer absolutamente nada e ainda te contava TUDO o que ia acontecer no seu futuro, o que mais eu poderia querer aos 20 anos?

E lá fui eu, para a casa do caralho, que nem sei dizer onde exatamente, mas era no extremo da zona norte - sim, eu fui idiota de ir, mas isso me rendeu boas risadas, uma história, um passeio delicioso com essa amiga querida e duas blusinhas que eu adorei usar durante anos, já que eles também tinham uma arara com roupas legais para as meninas acompanhantes se divertirem, enquanto esperavam as amigas se 'consultarem' com o tal guru.

Não dá pra esquecer o que ele me disse. Entre outras coisas que eu jamais me lembraria, ficaram duas bem interessantes: a primeira foi que o namoradinho que eu tinha na época, era 'meio gay' e já tinha 'se relacionado' com o primo, que também era meu amigo e o qual esse namoradinho morria de ciúme. A outra era que meu irmão - que tinha acabado de se mudar para Floripa e que sempre teve e ainda tem uns parafusos a menos - poderia sofrer um acidente ou poderia ser preso por causa de um conhecido que fazia umas coisas 'erradas'.

Pronto. O guru conseguiu me preocupar, já que eu não tinha dito a ele que meu irmão tinha ido morar em outra cidade, mas ele insistia que eu precisava avisá-lo dessa possível 'tragédia'.

Como se não bastasse, por algum motivo surreal, meu irmão que ainda não tinha dado sinal de fumaça, me ligou de lá nessa mesma noite, dizendo que estava com saudade e que as coisas lá não estavam às mil maravilhas. Bastou para dar em minha telha que eu tinha que ir até lá ver o que estava acontecendo.

Chegamos na parte que eu 'fugi' de casa.

Era final de ano, perto do natal. Eu não tive dúvidas: não falei nada em casa - já que eu sabia que minha ideia seria execrada - fiz minhas malas, liguei para minha amiga mais querida e mais antiga da vida e pedi carona até a rodoviária - essa não era a mesma do guru e sempre teve esse mesmo ímpeto de fugir de casa desde criança, mas como ela não tinha uma avó por perto, ela sempre fugia para a minha casa, que era no andar debaixo da casa dela. Eu adorava quando ela fazia isso! Passei as melhores e as piores coisas ao lado dela.

Eu tinha um dinheiro guardado - que nem sei como consegui porque eu não trabalhava, mas minha mãe trabalhava - que dava para a passagem de ida e para a passagem de volta, mais uns 50 reais que, na minha cabeça, dava pra passar 15 dias comendo pão com manteiga todos os dias. Minha intenção era arrumar um trabalho de garçonete enquanto estivesse lá. Também era minha intenção não voltar mais para São Paulo, acho que por isso minha mãe define essa viagem como uma fuga.

Liguei para os meus pais e disse que estava indo encontrar meu irmão em Floripa e que não sabia quando voltava. Ia passar natal e e ano novo por lá. Coitados, nenhum filho deveria fazer esse tipo de coisa com os pais.

Essa amiga usava um Uno Mille prata da mãe dela. Era engraçado porque quando ela dirigia, era uma aventura! Geralmente não estávamos nos nossos estados normais. Infelizmente, não temos noção do quanto a vida é boa enquanto ela é boa, só percebemos depois que tudo passa a ser a mesma coisa todo dia.

Cheguei na rodoviária, comprei a passagem e ela me colocou no ônibus, sempre me incentivando, como fazia desde que tínhamos 1 ano - e ela 2 - de vida.

Depois de passar 12 horas no ônibus, finalmente cheguei à Floripa. Não tenho como definir minha excitação e felicidade desse momento. Eu me sentia livre, havia rompido com todas as minhas ligações umbilicais. Meu irmão me esperava na rodoviária e aquele abraço em que eu pulei no colo dele é indescritível.

O dia estava lindo, ensolarado. Pegamos um ônibus para a casa que ele estava morando com mais três amigos. A casa era um quarto, com um armário, duas camas e um colchão. A cozinha tinha um fogão, uma geladeira, uma panela de macarrão e uma frigideira. E só. Essa era a casa. Em uma tranquila rua de terra, com um lago lindo um pouco mais a frente.

Eu poderia dormir no quarto com eles ou na cozinha. Decidi dormir na cozinha. Comprei pão com mortadela pra todo mundo no primeiro dia, afinal, todo mundo dividia tudo o que tinha e essa era a melhor parte.

Todo mundo conhece Floripa. As pessoas são bonitas e bem educadas, as praias são lindas e limpas e os "manézinhos" - como são carinhosamente chamados por causa da colonização portuguesa, em que o rei da época chamava-se Manuel (ah! um português chamado Manuel? Não diga!) - não iam lá muito com a cara dos paulistas. Porém ainda não sabíamos desta "xenofobia".

Meu irmão, meus amigos e eu gostávamos muito de graffitti - e ainda gostamos, cada um à sua maneira - e uma noite decidimos levar um pouquinho da arte de São Paulo para Floripa, afinal, nada melhor do que deixar sua cor em outra cidade.

Estávamos em 6 amigos pintando tranquilamente - como fazíamos em São Paulo -, um muro de pedras, bem perto da casa em que estávamos morando, quando uma viatura de policias manézinhos passou. Disfarçamos, escondemos as latas de spray e saimos andando, também como fazíamos em São Paulo. Mas os manézinhos xenófobos sentiram aquele cheiro gostoso de tinta e resolveram voltar para averiguar o que estava acontecendo - acho que foi nesse momento que eu descobri uma das poucas coisas boas de ser menina.

Eu já estava do outro lado da rua, com uma mochila cheia de latas. Resolvi jogar a mochila no meio de um matagal ao meu lado. Os manézinhos policias resolveram também vir falar com a gente - os paulistas que iam pra Santa Catarina fazer baderna - sobre aquele "vandalismo", e dois dos meus amigos tinham latas no bolso.

Chegamos agora nas partes 'trágicas' da história.

Me perguntaram - a única menina, que salvou meu irmão e dois amigos - se eu conhecia os outros dois que estavam com as latas no bolso. Com um cutucão, quase chorando de culpa, eu disse que não. Nesse momento, um manézinho resolveu usar seu spray de pimenta nos olhos de um dos meus amigos e me disseram pra sair andando. Eu e mais três, tivemos que deixar dois para trás - essa foi a primeira vez em que me senti a pior pessoa do mundo.

Andamos um pouco e eu sentia horror de pensar que eles poderiam encontrar minha mochila no meio do mato. Um pouco adiante, precisei correr de medo. Os outros correram também. Entramos no meio do mato e dois caíram em um pântano. Mesmo em meio ao total pânico, caímos na risada, foi hilário.

Os manézinhos levaram meus dois amigos para a delegacia. Passaram a noite presos - já estavam acostumados a passar por esse tipo de coisa por serem pegos grafitando. A única que tinha carteira de motorista era eu, então peguei o carro de um dos amigos que foi preso e fui até a delegacia tentar convencer os policiais a não continuarem com aquela maluquice.

Quando cheguei, umas 6 da manhã, eles já nao estavam mais lá. Tinham sido liberados com a condição de limparem o muro no dia seguinte, com qualquer coisa que tirasse nossa arte de lá.

Os meninos passaram dias limpando o tal muro. E, nesta altura do campeonato - não havia celular, nem telefone na casa -, resolvi ligar para casa. Era natal e eu queria dizer olá. Me atenderam como se eu estivesse na Guerra do Vietnã. Me pediram pra voltar. Eu não queria voltar, estava feliz, em liberdade! Disse que estava bem, desejei feliz natal a todos, mas ninguém estava feliz com a minha viagem e eu estava realmente com fome. Não aguentava mais comer pão com manteiga. No entanto, não sofri com isso nem por um minuto.

Não consegui o tal emprego de garçonete, voltei pra casa 20 dias depois, já que não tinha mais como viver. Comi pão todo os dias, mas pude tirar a roupa às 5 da manhã e entrar no mar, dormir na areia no ano novo sem ônibus pra voltar pra casa, conhecer pessoas extremamente estranhas, ver meu amigo tomar água com a torneira fechada, brigar com um cara que estava gritando com uma mulher e conhecer uma ilha linda, de uma maneira excêntrica, exatamente do jeito que eu gosto de viver as coisas: com as veias e os nervos expostos.

Senti culpa por tudo isso durante muitos anos. Hoje posso dizer: essa foi a melhor viagem da minha vida e eu faria absolutamente tudo outra vez. Simplemente porque não existe maneira de romper nada na vida sem destruir as expectativas que você - e as pessoas ao seu redor - tem em relação à você.



Praia da Joaquina

2 comentários:

  1. Fechou com chave de ouro: "Simplemente porque não existe maneira de romper nada na vida sem destruir as expectativas que as pessoas - e você mesmo - tem sobre você."
    Amei.
    Beijos e saudades.

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  2. Oi Tha! O Rafa falou dessa história e eu passei aqui pra ler pessoalmente, heheeh
    Eu conheci floripa de um jeito bem mais tranquilo, acho, mas sinceramente não tem nada como essa liberdade de "fuga", hahaha
    Beijos

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